Nestes dias de isolamento social e angústia aprendi a buscar alívio nas memórias alegres. Vasculhando-as, lembrei de um fato pitoresco.
Depois de meses de preparação, chegamos a Santiago, Chile, no final da tarde. Fomos recepcionados no aeroporto pelo motorista, o simpático Carlos. Tão logo acomodou nossas malas na van, nos presenteou com uma garrafa de Carménère. Rosinha, embora gostasse de tomar vinhos, era uma iniciante, e perguntou ao marido Beto: Já tomamos Carménère, querido? “Tomamos!”, respondeu secamente, como que adivinhando a pergunta seguinte. “Nós gostamos, querido?” – Beto engatou: Gostamos! Então, Rosinha esboçou um largo sorriso e agradeceu efusivamente a Carlos.
Na manhã seguinte, por volta das sete e meia, já estávamos adentrando novamente a van e o silêncio inicial da viagem foi quebrado pela música de Roberto Carlos. O motorista fez questão de dizer que aprendeu a pronúncia da língua portuguesa com as músicas do Rei e começou a cantar: “Jesus Cristo! Jesus Cristo!”. O que foi seguido por todos, em um belo coral: “Eu estou aqui!” Assim, a viagem seguia alegre rumo a Valparaíso.
Em dado momento Carlos diminuiu a marcha, abaixou a música e sugeriu: “Logo a frente há uma vinícola muito bonita, que é pouco visitada pelos brasileiros em razão da distância de Santiago. Poderíamos fazer uma breve parada”. Ante a concordância de todos, fizemos uma pausa.
Realmente as instalações eram lindas. Como nossa visita não fora programada, nos dirigimos ao wine bar, onde fomos atendidos por Adriano, um experiente sommelier. Beto tomou a frente e perguntou: “Vamos experimentar um único vinho, um tinto. Qual você indica?” Foi escolhido um Syrah Reserva.
Diante do longo balcão, a última a ser servida foi Rosinha, tendo o sommelier permanecido à frente dela. Todos seguiram a recomendação dada, giraram a taça, cheiraram e experimentaram o vinho. Tão logo Rosinha tirou a taça dos lábios, o sommelier indagou a ela: “Sentiu a Pimenta?” Surpresa, Rosinha franziu a testa e questionou em tom ríspido: “O Senhor colocou pimenta no meu Vinho?”
“Calma, Senhora, eu explico”, respondeu o solícito atendente: “A pimenta vem da fruta!”
Mais irritada, Rosinha afirmou: “No Brasil, uva não tem pimenta.”
“Calma, Senhora”, reiterou Adriano. “Este vinho é da uva Syrah, que em clima moderado como o nosso, próximo à costa do Pacífico, ela desenvolve um composto orgânico que é semelhante ao aroma e sabor de pimenta negra, que no Brasil se chama ‘do reino’. Mas quando está na uva ele é imperceptível. Mas, com a fermentação, há a transformação do açúcar do suco da uva em álcool. Desta maneira, quando o vinho é colocado na taça e nós a giramos, o álcool evapora e leva consigo este composto orgânico, que chega ao nosso nariz e sentimos o aroma de pimenta e todo aroma é percebido com o corresponde sabor. Cada uva, conforme o clima, tem uma característica diferente, a Syrah também tem aroma de amora; a Chardonnay apresenta aroma de abacaxi; a Sauvigon Blanc, grama cortada, maracujá; a Pinot Noir, frutinhas vermelhas, morango, framboesa e cereja.”
Rosinha ficou fascinada com a explicação, girou a taça novamente, aspirou, provou mais um gole e reconheceu, agora em tom descontraído: “Realmente tem uma pimentinha aqui.” O paciente sommelier abriu um sorriso e, dando um delicado tapinha na mão de Rosinha que estava sobre o balcão, encerrou: “Senhora, fique tranquila, não colocamos pimenta no seu vinho.”
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